A PRODUÇÃO DO ESPAÇO URBANO: BELO HORIZONTE, DE CIDADE À METRÓPOLE
A PRODUÇÃO DO ESPAÇO URBANO:
BELO HORIZONTE, DE CIDADE À METRÓPOLE
Texto-base para as atividades do Módulo III (“A Metropolização e o Direito à Cidade”) do Curso de Capacitação de Agentes e Conselheiros Municipais, Belo Horizonte, 2006.
Eliano de Souza Martins Freitas, Gláucia Carvalho Gomes,
Luciana Moreira Barbosa Ostos, Sérgio Martins e William Rosa Alves
Grupo de Pesquisa As (im)possibilidades do urbano na metrópole Contemporânea
do Instituto de Geociências da UFMG, e
Comissão de Assuntos Urbanos e Meio Ambiente da
Associação dos Geógrafos Brasileiros – Seção Local de Belo Horizonte
A metrópole que aparece em meio à cidade
1. Por vários motivos, a Belo Horizonte dos dias de hoje é tida como uma metrópole. Primeiro, porque a cotidianidade de quem mora, trabalha, se diverte, enfim, circula por suas vias e utiliza seus espaços, já alcança mais de 4 milhões de pessoas. Daí as problemáticas da habitação, emprego, estudo, saúde, transporte e outras serem apresentadas como enormes. Mas também porque percebemos que nossos trajetos não são definidos somente por quem está por aqui: as falas sobre Minas Gerais, Sudeste, Brasil, América Latina e Mundo são sempre relacionadas às localidades onde moramos, trabalhamos e tentamos viver com alguma dignidade na “Grande BH” (a metrópole que não coincide exatamente à Região Metropolitana). Em praticamente todos os assuntos do dia-a-dia da metrópole, fala-se na influência da Região Metropolitana, do estado, da região, do país, do mundo em “BH”, e vice-versa: as atividades situadas nesta metrópole repercutem nessas outras espacialidades. Reconhecemos que há relações complexas, onde as municipalidades (Betim, Nova Lima, Contagem, Vespasiano, Belo Horizonte ou qualquer outra) nem sempre aparecem como o lugar principal dos fazeres, do entendimento e das decisões sobre as nossas vidas e de quem conhecemos. Começamos a perceber então que uma metrópole vai além das cidades em que vivemos, pois a metropolização aparece nos diversos lugares que freqüentamos cotidiana ou eventualmente, e de diversos modos que dificultam olhar um caminho nítido a seguir para alcançarmos nossos objetivos de vida individual e social.
2. Parece que as decisões sobre os lugares que freqüentamos escaparam da nossa possibilidade de interferir, ou mesmo de colaborarmos para melhorar outros locais semelhantes da cidade. Vemos e ouvimos diariamente em notícias, reuniões, conversas e em outros momentos, que há uma ordem que faz com que alguns processos se mantenham para que alguns resultados pareçam permanentes. É o caso da produção contínua da própria cidade: enquanto continuamos trabalhando e persistem as reclamações quanto à pobreza em que a maioria vive, nas fábricas, lojas, ruas e estradas, vemos cada vez mais automóveis, roupas, eletrodomésticos e outros objetos identificados com os graus de riqueza celebrados no Brasil.
Imagens do que “era” a cidade
3. Esses lugares e essas coisas não existiam ou não estavam assim no decorrer dos anos, como dizem os nossos antecessores (parentes, conhecidos, os registros em livros, vídeos ou qualquer forma de apresentar o passado e sua relação com o presente). Por isto é importante olharmos o momento em que apareceu pela primeira vez um lugar, um equipamento, um objeto e os grupos humanos e suas relações que mudaram algo da vida. Podemos observar também se cada elemento desses às vezes é visto como único, e em outras tido como mais um entre tantos que surgem à medida que a cidade que conhecíamos cresceu, e foi além até mesmo das expectativas que essas pessoas tinham quando vieram para cá e se criaram em meio às suas famílias e vizinhança. Essa dinâmica acelerada da metrópole quase sempre se distingue do ritmo de vida de quem nos antecedeu na labuta da vida. Por isso dizemos que para entender a cidade (e a sua transformação em metrópole), é preciso conhecer os diversos momentos da vida para nós e para quem participou e/ou continua participando dessa ampla e complexa espacialidade.
4. As gerações que habitam a Grande BH hoje têm origens diversas, mas a grande maioria de nós tem em comum a necessidade do nosso próprio trabalho individual ou familiar para viver. E, apesar do desemprego ser fato evidente nessa metrópole, vemos que a produção nos move a cada momento. Para a maioria, a vida se define em meio à necessidade do trabalho (como meio de sobrevivência), e suas condições (habitação, transporte, saneamento, educação, saúde, lazer etc.). Toda vez que é anunciada ou iniciada uma construção (comumente chamada de “obra”), um serviço ou alguma atividade referida à modernização desta metrópole, constrói-se uma imagem de que os benefícios são para toda gente que aí se encontra, vinda de outros lugares ou para famílias que há muito tempo habitam por aqui. O sentido geral que a vida na cidade assume é o do progresso, algo que aparece não só como melhoria geral, mas como caminho irreversível de tudo e de todos.
Uma introdução quanto às normas do crescimento da cidade
5. Os testemunhos de quem por aqui vive há muito tempo (por anos, décadas ou até uma vida inteira) falam de uma Belo Horizonte que parece não existir mais. De quando ela foi cidade, guardam-se memórias dos percursos mais curtos e menos apressados entre a casa e o trabalho ou o lazer. O “tempo da vida” era outro e é lembrado saudosamente por muita gente. Vemos então que nos dias de hoje, para continuar a fazer as mesmas atividades, ou até assumir as novas tarefas da vida, é necessário tornar mais rápidos os deslocamentos cada vez maiores. Aumenta também a separação dos locais segundo suas funções e esses aparecem como especializados. Se antes os lugares onde se resolvia algo da vida na cidade estavam próximos entre si (o “Centro”) e das casas de quem mora na cidade, percebemos cada vez mais a distância física e as dificuldades cumprir os procedimentos para o enfrentamento dos muitos problemas.
6. Quando se reclama da “burocracia” nas regras na cidade, vemos também que lidamos com algo cuja lógica parece irracional. As reivindicações da maioria do povo daqui testemunharam e empunharam várias lutas, e algumas até hoje não encontram resultados reconhecidos, pois os procedimentos para a superação das dificuldades demoram. Mas o surgimento de atividades e mesmo de lugares com extrema rapidez, quase sempre em nome do progresso por meio do crescimento econômico, sugerem que há preferências nas formas e no modo das decisões quanto ao que é importante a algo tão grande como a metrópole BH.
7. Nessa dimensão política, na tradição vivida por aqui os candidatos e governantes raramente deixam de apresentar as “obras” como os principais feitos das suas gestões ou de seus colaboradores e correligionários. Mesmo quando discursam sobre temas complexos como educação, saúde, cultura e segurança pública, a insistência nos equipamentos antecedem ou mesmo excluem debates em que se pode perguntar sobre os sentidos da vida na cidade, e assim considerar as vivências da maioria empobrecida que vive da venda do próprio trabalho.
8. Um exemplo concreto é a formação dos loteamentos para essas classes (comumente chamadas de “populares”), onde quase sempre as terras de fazendas e sítios antigos foram repartidas e os donos divulgaram a idéia de “morar no que é seu” em folhetos, rádios, tv e onde mais se alcança quem precisa de lote para construir. No começo, quase todos foram ocupados mesmo sem infra-estrutura e serviços adequados: faltava água, rede de esgoto, as ruas de terra com poeira nos períodos mais secos do ano e na época das chuvas a lama e as inundações tornaram-se pesadelo e noites de vigília, com a preocupação em não adquirir doenças (em especial as crianças e pessoas idosas), não ficar ao relento, não perder os móveis ou a casa inteira comprados com trabalho duro. Lentamente se conseguia algumas condições para morar e tocar a vida. Só com a chegada dos equipamentos e serviços básicos (quase sempre conseguida com muita luta) é que se ganhou um pouco de tranqüilidade para dedicar-se ao trabalho e aos momentos de confraternização com parentes, a vizinhança e as amizades que às vezes moram do outro lado da cidade. O comércio chegava aos poucos, e alguns alimentos antes colhidos nos quintais ou terrenos vagos próximos passaram a ser comprados a preços cada vez maiores nas quitandas, mercadinhos, sacolões e supermercados que gradativamente se instalaram nas periferias. Os ônibus precários e quase sempre lotados completam o ritmo da vida de quem habita as lonjuras de Belo Horizonte, como as regiões do bairro Goiânia, Barreiro de Cima, Venda Nova, Serrano, Tupi, Palmeiras e tantos outros. Mais do que isso, desde os anos de 1960 multiplicaram-se os lugares de residência popular em Ribeirão das Neves, Ibirité, Santa Luzia, Contagem, Sabará, Betim, Vespasiano e os que foram gerados como periferia na expansão metropolitana.
9. O tempo da vida então vem sendo comprimido pelo crescimento da cidade. Se de um lado os ônibus são mais potentes e a maior parte das avenidas estão mais largas, de outro se vê a multiplicação dos automóveis a congestionar o trânsito e manter ou até aumentar as horas gastas na condução. O preço do deslocamento também não se reduziu no orçamento familiar, apesar das empresas de transporte coletivo por ônibus terem crescido em razão do pagamento diário a cada passagem na roleta. Sempre quando reclamamos da condução lenta, desconfortável e cara, aparece o discurso que pede “paciência”, pois a modernização do espaço da cidade vai corrigir esses problemas. E quando ela aparece, com grandes avenidas, as vias chamadas de “expressas”, os sistemas de integração ao metrô e os terminais de baldeação de um ônibus para outro, vemos que mudam os trajetos, mas não o longo tempo do percurso que reduz ou até inviabiliza a convivência e a dedicação a quem está mais próximo, de quem gostamos ou de quem precisamos ter contato. O ritmo da vida na cidade que se torna metrópole escapa da familiaridade e da amizade dos semelhantes, e aparece confuso no meio de tanta pressa e de tantas formalidades: como se vestir, no cumprimento dos horários, nas empresas que afirmam não ter emprego, nas repartições públicas onde se nega o atendimento das reivindicações que surgem a cada período, quando uma autoridade afirma que não há recursos para nossas reivindicações.
Da negação das condições de vida ao modo de se produzir o espaço urbano
10. Parece absurdo, mas mesmo em Belo Horizonte, capital do estado e reconhecida como força econômica, social e política do país, encontramos até os dias de hoje locais de residência sem atendimento de água, como as favelas e alguns loteamentos considerados “clandestinos”. Nas favelas e outras situações de extrema pobreza, já se questiona a idéia de que a culpa da pobreza é da própria família dita “pobre”, porque tem muitos filhos. Essa aparência vai sendo desmentida mediante a organização dos próprios habitantes (os chamados movimentos populares ou sociais). No caso dos loteamentos clandestinos ou irregulares (que não correspondem ainda às leis que procuram reger sua produção) também são problemas de sempre, pois a partir da compra do imóvel (terreno ou casa), quem habita o sonhado “pedaço de chão pra viver” passa a ser tratado como “consumidor” e não como “cidadão”. No Tirol 2 (região do Barreiro), por exemplo, os moradores insistem com a empresa loteadora que cumpra a promessa de instalar rede de abastecimento de água. Eles percorreram os órgãos públicos (COPASA e Prefeitura de Belo Horizonte) para sanar o problema e não receberam uma solução que os tranqüilizasse[1]. Assim, a cidade, ansiada como o lugar do melhor acesso às condições para “tocar” a vida em ritmo acelerado, é tornada caos cotidiano, pois se a legislação aparece como coerente em todos os níveis (metropolitana, estadual e nacional), o fato é que para a maioria mais empobrecida é necessária uma luta permanente e coletiva, os chamados “movimentos populares”. Mas vemos que o “caos” não significa “desordem”, pois os resultados das atividades econômicas localizadas no município e na metrópole conferem a Belo Horizonte lugar destacado na produção de mercadorias no Brasil inteiro (é o 5º município em Produto Interno Bruto entre os mais de 5 mil do país).
11. Por exemplo, a “Linha Verde” (grande avenida de ligação do Centro de BH ao Aeroporto de Confins) é anunciada como “um grande passo para futuro”, que já acrescentou “milhares” de empregos e benefícios para quem mora perto dela e mesmo para quem precisa passar por ali. Tais justificativas parecem legitimar as ações os governos (de MG, de BH e dos vários outros municípios ao norte da capital). Diante de tanta propaganda quanto aos “benefícios”, pouco se divulgou do destino de quem até então mora nas ocupações adjacentes à avenida Cristiano Machado (o eixo central da “obra”): a remoção é problema não só em razão das parcas indenizações, mas sobretudo devido à ruptura dos laços sociais e o risco (muito provável) de ficarem longe dos locais de trabalho atuais e perderem as condições de infra-estrutura e serviços conquistados numa luta de décadas[2]. Além disso, quando se diz que fortalece a expectativa de investimentos que geram emprego e renda na região, não se explica quem será mais beneficiado com isso. A experiência de muita gente que passou por remoções ou acompanhou mudanças semelhantes (provocadas por outras grandes obras) pode ajudar a entender que nesses casos há mais deslocamento dos problemas para outros lugares e não a sua efetiva solução. E sempre surgem problemas novos nos locais produzidos e outros modificados com tais intervenções. Além disto, a própria forma de produção desse espaço se dá no nível do arranjo entre empresas e governos, sem participação popular. De um lado, o tamanho (metropolitano) da obra é propagandeado como inserção pródiga da Grande BH no contexto internacional (com fluidez do tráfego para o Aeroporto de Confins e a instalação de um distrito industrial de alta tecnologia e produção de valor agregado). De outro lado, os protagonistas desse empreendimento não dizem que assim se aprofunda a dependência do transporte sobre rodas, principalmente o automóvel individual. Se há mais de 250 milhões de reais para a obra, poder-se-ia pensar na agregação de recursos para a extensão do metrô da Grande BH, reconhecido como insuficiente para os necessários deslocamentos nesta metrópole. Em casos assim, falta abrir o franco debate quanto ao “futuro” celebrado nessas investidas em que os governantes não só representam, mas realizam os interesses dos donos dos capitais.
12. Pelo fato de BH ser uma capital de estado, os “grandes equipamentos” sempre estiveram presentes, como o Parque Municipal, os Aeroportos do Carlos Prates e o da Pampulha, o conjunto administrativo e de eventos da Gameleira (atual “Expominas”), o Jardim Zoológico, o Campus Pampulha e o Horto Florestal da UFMG, o Aterro Sanitário da BR-040, o Jóquei Clube (desativado há bastante tempo). Por aqui essas estruturas estatais (algumas administradas por fundações de direito privado) foram mais presentes que as grandes fábricas (como a Mannesmann no Barreiro, a Terex que funcionou no bairro Suzana), ou as concentrações comerciais e atacadistas (como no bairro São Francisco, no Olhos D’Água ou no Engenho Nogueira). Para entendermos as barreiras que dificultam ou impedem os percursos a pé ou de bicicleta na metrópole, é interessante ainda observarmos as grandes vias férreas e rodoviárias (como o Anel Rodoviário, a Via Urbana Leste-Oeste, chamada de “Expressa”, as avenidas resultantes de canalização de cursos de água, como a dos Andradas, a Bernardo Vasconcelos ou a Américo Vespúcio). Que relações entre o habitante e a metrópole surgem daí?
13. Vejamos um exemplo dos efeitos de megaobras: a Vila Oeste (zona oeste), loteamento aprovado em 1938, teve interrompida sua formação como bairro (com benfeitorias, serviços e demais condições para uma participação produtiva na cidade: “com a segurança de morar bem pode-se trabalhar melhor”, como se diz). A construção do Anel Rodoviário de Belo Horizonte (inaugurado em 1963) e a da Via Urbana Leste-Oeste (mais conhecida como “Via Expressa”, inaugurada em 1981[3]) significaram a perda de muitos laços de convivência das famílias ali habitantes, e o surgimento de conflitos entre famílias e gerações antes amistosas entre si[4]. Também convivem até hoje com as permanentes dificuldades em alcançar o respeito como cidadãs e cidadãos: desde a ausência de infra-estrutura e serviços básicos até as limitações da mobilidade necessária para participar dos momentos de debate e decisão quanto à própria vida e de quem se encontra em condições semelhantes.
14. Na metamorfose da cidade em metrópole, vemos em Belo Horizonte várias fases da produção de espaços sofisticados para o usufrutos de quem é identificado como “rico”. Desde os anos de 1960, multiplicaram equipamentos voltados para reunir a multidão que se forma, mas como “massa” e não como uma cidadania da igualdade com e por meio das diferenças. É o caso dos grandes equipamentos de lazer, como os estádios e ginásios (o “Mineirão” e o “Mineirinho”) e os parques que embora pareçam ser lugares onde a vida definida pelo e para o trabalho é temporariamente interrompida, estão articulados à idéia de produzir e controlar as reuniões de membros, frações e multidões das classes populares. Ou seja, para as classes populares a metrópole se constitui um conjunto ordenado de lugares, com funções especializadas, com usos previamente concebidos, definidos e controlados. Daí porque os locais de concentração de comércio são cada vez mais vigiados, por exemplo, pelo “Olho Vivo” (programa de vigilância diuturna já existente nas regiões central, Savassi, Barro Preto e a serem instalados em Venda Nova e Alípio de Melo). Isto acontece para garantir “segurança ao consumidor”, a categoria mais celebrada na metrópole contemporânea.
A face “rica” da metropolização
15. Vimos então que a metropolização implica em contenção dos pobres, contrária às promessas de emancipação construídas nas lutas (que formam um traço da memória da “cidade”), até porque a concentração de riqueza gera as impossibilidades de participar ativamente dos momentos da cidadania efetiva, democrática (dialogar, debater e decidir, desde a concepção dos projetos até às escolhas das formas de contemplar os diversos anseios). Nos últimos 30 anos, para uma inserção competitiva (funcional) no crescimento da cidade e do país, as frações de renda média[5] ocuparam prédios de apartamentos na região central e zona sul de BH. Atualmente são centenas de quarteirões com apartamentos e salas para escritórios e consultórios onde se encontra a maior parte do emprego na Grande BH até os dias de hoje. Vemos aí a confirmação do fundamento da periferização das classes populares desde o início de Belo Horizonte.
16. A partir dos anos de 1980, são produzidos mais espaços metropolitanos, como o Aeroporto de Confins nos municípios de Confins e Lagoa Santa. Além de enormes, os equipamentos aparecem cada vez mais luxuosos, como os prédios de apartamentos e salas do Belvedere III ** (construídos desde meados dos anos de 1990) ou do mais recente Shopping “AltaVila” ** (na divisa do município com Nova Lima). Também são exemplares as luxuosas construções dos vários condomínios fechados nos “eixos” de expansão Sul (como o Alphaville ** Lagoa dos Ingleses e outros nos territórios dos municípios de Nova Lima e Brumadinho) e Norte (mais visível em Lagoa Santa). Com o crescimento da população e uma seletiva facilidade da circulação para chegar às tarefas da produção das mercadorias, vemos principalmente nos últimos 30 anos a instrumentalização do espaço da metrópole. Além do dia-a-dia do trabalho nos lugares históricos, a massificação das presenças em Belo Horizonte foi acrescida pelos espaços de entretenimento no nível do espetáculo e não mais para a festa. Normas incidiram nos espaços tradicionais do tecido socioespacial da metrópole, principalmente na região central e lugares reconhecidos pelas atividades culturais surgidas na própria BH. Mas também muito do lazer foi acondicionado nos shopping centers e outros espaços, como o centro de eventos “Mega Space” ** (inaugurado em meados de 2003 em Santa Luzia[6] e anunciado pelos donos como capaz de receber até 100 mil pessoas num só show[7]).
17. O discurso publicitário de empresários e governantes (assumido também por muita gente do povo) diz que os grandes equipamentos (vias “expressas”, centros de eventos, shopping centers etc.) são a melhor expressão da riqueza. Se eles crescerem e se multiplicarem, a produção pode ser distribuída mais igualmente para quem se encontra na pobreza. Insistem ainda que se os lugares onde moram os pobres receberem os mesmos benefícios que os dos ricos, a pobreza da cidade-metrópole será reduzida e superada. Mas os mesmos dizem que os próprios pobres é que devem trabalhar mais e melhor para alcançarem o conforto e a prosperidade alcançada por algumas famílias ricas. Nos exemplos trazidos sobre a produção dos lugares da moradia popular e as espacialidades para as frações endinheiradas, vemos a coerência entre o fundamento da propriedade privada e a prevalência do crescimento econômico imposta a toda gente, assegurado pela permanência e fortalecimento da chamada “especulação imobiliária” na metropolização.
A problemática sociopolítica da metropolização
18. A manutenção da pobreza passa pelo atraso do provimento das condições necessárias ao conforto e fartura nos lugares de moradia das classes populares. Isso ocorre porque os recursos são priorizados para os já beneficiados pela modernização, e também porque enquanto essas frações empobrecidas se concentram em alcançar tais condições por meio do emprego, vivem mais o ritmo das necessidades do que um tempo aberto para o lazer ou mesmo para alcançar informações e participar dos debates e momentos de decisão política. Parece vivermos outro período distinto daquele das conquistas resultantes da luta pela “repolitização” da cidade (a partir das mobilizações e organizações populares iniciadas em meados da década de 1970[8]), como as Uniões e Federações de Associações Comunitárias, os Programas Municipais Setoriais junto aos governos pós-ditadura de 1964-1985 (em especial da área de habitação, como o PROFAVELA de 1983[9]). Também já demonstram insuficiência o Orçamento Participativo (contido à média de 5% do orçamento municipal, e que teve em 2006 um grande aporte de dinheiro para cumprir obras já decididas pela população[10]) e as demais formas convencionais de financiamento de “obras”. Os apelos aos chamados “organismos” financiadores nacionais (como o BNDES e a CEF) e, principalmente inter e transnacionais (como o BID e o Banco Mundial, respectivamente) evidenciam a dependência dos municípios metropolitanos de empréstimos volumosos e a custos muito elevados.
19. Com tal financismo, os membros das classes populares são empurrados para a competição individual, como se o sucesso pessoal e familiar dependesse somente do empenho e da obediência às regras que lhes são apresentadas no emprego, nas escolas e demais instituições presentes na metrópole. Isto influencia também os movimentos, que já não dispõem de militantes para se envolver nos combates cada vez menos travados nas ruas (manifestações e confrontos contra o sistema de proteção à propriedade) e cada vez mais divididos em instâncias estatais (legislativas, executivas e judiciárias).
20. Esse sentido consoante à concentração do poder de manter ou mudar as formas de participação e decisão na cidade parece distinto das mobilizações freqüentes na trajetória de Belo Horizonte. Por aqui, assim como em tantas outras cidades e metrópoles, as frações mais subalternizadas nas normas da produção do espaço urbano (como tentamos mostrar neste texto) têm longa tradição de resistência, como os momentos de enfrentamento aberto (em confronto com a ordem vigente, como as manifestações de rua e greves). Mas desde a instauração do chamado período “neoliberal” (iniciado abertamente em 1990, com o governo Collor de Mello), cresce o número de pessoas e entidades que contornam os privilégios com atitudes de socorro aos mais pobres (os chamados “desvalidos” ou “excluídos”). Quando isso é feito sem se questionar as regras da produção do espaço urbano, vemos a ingenuidade e o voluntarismo que mantêm os atendidos como dependentes de outrem, seja pessoas, sejam instituições particulares, seja o próprio Estado. Fica evidente a confluência dos interesses dos governantes e empresários na metrópole, definindo um rumo cada vez mais mercantil e financista para a vida que acontece por aqui.
21. Portanto, a metropolização é a produção monopolista do espaço urbano, ou seja, quando a “cidade” é tornada cada vez mais um espaço inteiro de fabricação e consumo industriais, mesmo que as fábricas não apareçam tanto nas cenas urbanas. Para isso, é preciso que as formas de decisão do que pode acontecer nos lugares (nos já existentes e nos novos) não sejam disputadas entre quem lucra e quem empobrece porque depende do lucro do outro para sobreviver. As possibilidades políticas da cidade são substituídas pelas realizações centradas nos interesses econômicos dos donos do capital.
Uma breve síntese na busca da compreensão da metropolização
22. Assim vemos que o traço permanente da produção do espaço urbano numa cidade tornada metrópole é a produção e circulação de mercadorias, mesmo quando alguma “obra” ou programa governamental surge em nome do “interesse público”. E tal produção não se resume apenas ao ajuntamento de condições para a maior produtividade do trabalho à venda segundo as exigências das empresas (a fim de maiores lucros para essas) e dos governos (para manter as contas “equilibradas” entre gastos e receitas). Aí já surgiu o “setor de urbanização”, pois desde a definição das formas dos loteamentos, do sistema viário e de abastecimento de energia elétrica, água, o escoamento de esgoto, tudo já está financiado pelas somas de dinheiro privado e público (principalmente os impostos e títulos das dívidas dos governos) e requer agora os lucros, o famoso “retorno dos investimentos”. Percebemos então a simbiose empresa-Estado-empresa no desenvolvimento brasileiro como das mais favoráveis aos donos e gestores dos meios de produção (as máquinas, fábricas, equipamentos etc.). Isso só é conseguido quando há uma idéia geral de que o único modo de toda gente alcançar a prosperidade é por meio do crescimento cada vez maior da fabricação de coisas e invenção dos modelos de vida que integram a “cidade”.
23. No caso de Belo Horizonte, desde a sua fundação como “nova capital” do estado de Minas Gerais, o rumo atrelado ao crescimento econômico arrastou as condições de vida para a integração à produção de mercadorias, mesmo que muita gente não alcance o emprego formal e o consumo dos produtos prometidos a todos. Nos dias de hoje, se de um lado vemos a permanência do desemprego, da habitação e do saneamento básico dignos à maioria dos habitantes, de outro lado surgem a cada momento vários empreendimentos luxuosos para morar, circular e produzir de tudo que é lucrativo na metrópole.
24. Assim, procuramos demonstrar também que a periferização não é um conjunto de erros ou insuficiências da produção do espaço (a “falta” ou a “insuficiência” ou ainda os “erros” do planejamento), mas é elemento indispensável na sustentação e até no crescimento da metrópole para os privilégios atuais serem mantidos. Não queremos dizer que deva se manter a difícil vida nas periferias da metrópole, mas são as normas do privilégio que garantem tal desigualdade. Se vemos que quem já está beneficiado chegou aos lugares e condições atuais por causa do favorecimento pelas instâncias de Estado (nas diversas escalas), é como se as classes populares precisassem repetir os mesmos métodos para alcançarem também a prosperidade, o conforto e a segurança. Assim se vê muitos ativistas (e mesmo organizações inteiras) defenderem seus interesses em prejuízo de uma cidade em que não seja dificultada a participação e a conquista para todos, inclusive para quem não se organizou ainda. Vemos aí que os agentes populares, muitas vezes, reproduzem o corporativismo com que as entidades empresariais e governamentais conduzem a cidade.
25. O que as ideologias tão presentes na metrópole não revelam é como e para que os lugares foram produzidos, insistindo que é a falta de produtos o motivo de a maioria morar e viver precariamente. Quase sempre as espacialidades ricas e pobres são apresentadas como mundos separados, e que a única forma de uni-las será com mais produtos. Mas quando vemos que na metropolização de Belo Horizonte sempre houve o favorecimento aos grupos empresariais (com seus fiéis representantes nas próprias instâncias de decisão estatal), podemos entender que a prevalência das práticas da produção das mercadorias é a força maior da metropolização. Aí as precárias condições para a maioria que vive da venda do próprio trabalho são compreendidas não mais como insuficiência dos próprios subalternos, mas como resultado da monopolização do espaço urbano. Ou seja, à medida em que são planejadas e realizadas as condições para a produção da riqueza, em especial o trabalho, há uma difusão da necessidade do emprego e um arranjo segregador entre os lugares da moradia e das outras atividades. Porém, como permanece a acumulação concentrada dos resultados (com uma proporção reduzida de empregadores e consumidores de bens e serviços), perdura a necessidade de tanto deslocamento (circulação) para as atividades indispensáveis à vida na cidade-metrópole, principalmente para os mais empobrecidos.
26. Assim, aprendemos que os resultados da produção na cidade (e da cidade) não aparecem iguais para todos, pois aí surgem os problemas provocados pela própria dinâmica dessa produção. As melhorias na habitação, no trabalho ou em qualquer outro aspecto na vida, ou seja, as normas prevalecentes na Grande BH significaram facilidades só para algumas famílias ou grupos. Além disso, quase sempre quando aparecem as reclamações de quem não foi beneficiado ou que foi até prejudicado, as respostas são de que não se pode impedir ou atrasar as inovações das condições de vida, ou ainda que receberão tal melhoria. Esse discurso se amplia e é visto como o mais representativo dos anseios pela melhoria da vida, pois uma vez que se progrediu com tais “obras” e serviços, mesmo que proveitosos apenas para uma parte de quem habita a cidade, retirá-los significa excluir quem já está beneficiado. Daí a imagem de um sentido único da produção na cidade (as suas “partes”) e da cidade como um todo. A crença em uma forma exclusiva do crescimento da riqueza é a condição para a legitimidade da expansão rumo à metrópole (a expansão da área urbana com os loteamentos, a ampliação e sofisticação das vias e dos equipamentos, o aumento dos esforços e custos para manter e para crescer mais ainda). A metrópole fica cada vez maior e mais sofisticada, o que dificulta o entendimento dos processos particulares e do processo geral, a metropolização. Envolve cada vez mais atividades, lugares e relações localizados em municípios próximos com outros fazeres no estado, país, continente, mundo.
27. Quando enfrentam as práticas que insistem nos expedientes atuais, os movimentos constroem noções que ajudam a compreender a desigualdade (a “injustiça”). Embora empurrados para uma negociação permanente, como se cada pedaço da metrópole tivesse que compor uma eficiência e produtividade, quando os movimentos desconfiam das promessas e rejeitam tais regras, lembram que a produção da riqueza fica comprometida se tudo e todos forem medidos como dinheiro, coisas, mercadorias. Qualquer crítica (ou seja, qualquer discussão com critérios rigorosos) não deve se limitar à apresentar a lógica do capital que impulsiona a cidade para o crescimento econômico, pois as presenças de quem não acompanha tais normas realizam algo de diferente do que é prometido para a metrópole. Os movimentos populares e sociais apresentam não só a insuficiência das formas atuais de gestão do espaço urbano, mas questionam suas finalidades e o modo de alcançá-las. Assim, ampliam a compreensão da metropolização ao dizer e querer algo da vida. Marcam desde já algumas das possibilidades de superar essa opressão e dominação que atinge a maioria.
[1] “Moradores do Tirol 2, que viveram 4 anos utilizando ligações clandestinas, nem com elas contam há 4 meses”; é a chamada da reportagem “Dramas do dia-a-dia sem água” (Diário da Tarde. Cidades. Belo Horizonte, 2 de setembro de 2006).
[2] “Valor das indenizações é motivo de novos protestos” (Diário da Tarde. Cidades. Belo Horizonte, 7 de junho de 2006.)
[3] Luiz Roberto SILVA, Doce Dossiê de BH. Belo Horizonte: Cedáblio, 1991, p.186.
[4] PLAMBEL (Superintendência de Planejamento da Região Metropolitana de Belo Horizonte), Os complexos diferenciados de campos na Região Metropolitana de Belo Horizonte, Belo Horizonte, 180, p.41.
[5] Em valores de 2005, o piso e o teto da renda mensal das famílias de classe média equivaleria a R$ 1.556,00 e R$ 17.351,00 respectivamente (Atlas da nova estratificação social no Brasil, São Paulo, 2006, disponível em https://www2.fpa.org.br/portal/modules/news/article.php?storyid=586).
[6] https://www.dodgenews.com.br/moparperformance/megaspace/megaspace.html
[7] https://www.megaspace.com.br/
[8] João Antônio de PAULA & Roberto Luís de Melo MONTE-MÓR, “As três invenções de Belo Horizonte”, In: Belo Horizonte, Prefeitura Municipal, Anuário Estatístico de Belo Horizonte, Belo Horizonte, 2001, p.27-49, em esp. p.46.
[9] “A favela como patrimônio da comunidade” (entrevista com Enrico Novara, coordenador da ong italiana Associação Voluntária para o Serviço Internacional, AVSI); Revista Estudos Avançados, São
Paulo, v. 17, n.48, p.124-129, mai.ago.2003, disponível em
https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40142003000200010
[10] “Convênio entre PBH e CEF destina recursos para obras de saneamento”, Diário da Tarde. Cidades. Belo Horizonte, 3 de junho de 2006.